O físico e astrônomo Germano Bruno Afonso, professor aposentado da
Universidade Federal do Paraná, é um dos mais premiados cientistas
nacionais. Mestre em Ciências Geodésicas (UFPR), Doutor em Astronomia e
Mecânica Celeste pela Universidade de Paris VI, Pós-doutorado em
Astronomia pelo Observatório da Côte d`Azur (França), coordenador do
curso de Pós-Graduação em Física da UFPR (1984-1990), Prêmio Jabuti de
2000 com o livro didático "O Céu dos Índios Tembé" (2000), Germano é
também o único brasileiro especialista em Arqueo-astronomia, uma
ciência reltivamente nova no país.
Mesmo com esse currículo
invejável, o professor tem sido vítima de preconceito em virtude de sua
dedicação ao estudo da Astronomia dos índios brasileiros. Não são
poucos aqueles que desconhecem o volume e a complexidade dos
conhecimentos que nossos indígenas possuíam, e ainda possuem, acerca do
céu. A seguir, uma entrevista com o professor, realizada por Rosana
Bond.
A constelação da Ema (Guyra Nuandu)
fica na região do céu ocupada pelas costelações ocidentais do Cruzeiro
do Sul, da Mosca, do Centauro, do Escorpião, do Triângulo Austral e de
Altar. Fonte: http://fisica.ufpr.br/tupi
O que é Arqueoastronomia?
É a disciplina que estuda os conhecimentos astronômicos legados pelas
culturas dos povos antigos, tais como os mesopotâmios, os egípcios, os
gregos, os maias, os incas e os índios brasileiros. Estuda,
principalmente, os monumentos líticos orientados para os pontos
cardeais e para as direções do nascer e ocaso do Sol, da Lua ou de
estrelas brilhantes, passíveis de medições astronômicas, que teriam uma
utilidade prática na determinação do calendário e da orientação. Além
disso, ela estuda a arte rupestre com possível conotação astronômica.
A observação do céu esteve na base do conhecimento de todas as
sociedades antigas, pois elas foram profundamente influenciadas pela
confiante precisão do desdobramento cíclico de certos fenômenos
celestes, tais como o dia-noite, as fases da Lua e as estações do ano.
O homem pré-histórico logo percebeu que as atividades de pesca, caça,
coleta e lavoura obedecem a períodos sazonais. Assim, ele procurou
registrar essas flutuações cíclicas e utilizou-as, principalmente, para
a sua subsistência.
Como se originou a Arqueoastronomia?
Em 1740, William Stukeley foi o primeiro a estudar Stonehenge, na
Inglaterra, do ponto de vista astronômico. Ele percebeu que o eixo
principal do monumento estava orientado na direção do nascer-do-sol no
solstício do verão.
A Arqueoastronomia desenvolveu-se com as
pesquisas do astrônomo Sir Joseph Norman Lockyer, fundador da
conceituada revista britânica Nature. Ele forneceu explicações
astronômicas mais detalhadas sobre os megálitos de Stonehenge e os
menires (do baixo bretão: men — pedra e hir — longa) da Bretanha
(França).
A partir de 1970, a Arqueoastronomia começou a ser
ministrada como disciplina em algumas universidades, sobretudo nos
Estados Unidos e na Europa. Atualmente, as pesquisas nessa área se
intensificam em todo o mundo.
E a Arqueoastronomia no Brasil?
No Brasil, até o momento, lamentavelmente sou o único astrônomo
profissional que se dedica ao estudo sistemático da Arqueoastronomia.
Em 1991, estudamos um monólito (pedra isolada) vertical, com cerca de
1,50 m de altura, encontrado em um sítio arqueológico, às margens do
rio Iguaçu, perto de onde foi construída a hidrelétrica de Salto
Segredo (PR). Ele tinha quatro faces talhadas artificialmente,
apontando para os quatro pontos cardeais. Em volta do monólito havia
alinhamentos de rochas menores que, aparentemente, indicavam os pontos
cardeais e as direções do nascer e do pôr-do-sol nas estações do ano.
O homem pré-histórico logo percebeu que as atividades de pesca, caça,
coleta e lavoura obedecem a períodos sazonais. Assim, ele procurou
registrar essas flutuações cíclicas e utilizou-as, principalmente, para
sua subsistência
Considerando que esse monólito talhado foi
colocado na posição vertical e que muitas tribos brasileiras usavam e
ainda usam o relógio solar, supus que o monólito poderia servir,
também, como um relógio solar mais aperfeiçoado, pois poderia fornecer
os pontos cardeais mesmo na ausência do sol.
Em 1996, durante
pesquisas com a arqueóloga Maria Beltrão, encontramos em Central (BA)
um monólito semelhante ao de Salto Segredo. Em 2001, na Ponta do
Gravatá, Florianópolis, também encontramos um monólito de 1,50 m, com
as faces talhadas para os pontos cardeais e rochas orientadas para o
nascer e pôr-do-sol nos solstícios e equinócios.
Qual a importância dos achados brasileiros num contexto mundial?
A Ilha de Santa Catarina, por exemplo, é rica em vestígios
arqueológicos, sendo a região mais interessante do mundo que
conhecemos, do ponto de vista da Arqueoastronomia, em virtude da
riqueza de seus megálitos (do grego: mega — grande e lithos — pedras)
com orientação astronômica e de suas gravuras rupestres, do fácil
acesso e da beleza do lugar. Desde outubro de 2001, estudamos algumas
gravuras rupestres e alguns megálitos orientados de Florianópolis,
juntamente com o antropólogo Adnir Ramos.
A que se deve essa riqueza de megálitos e gravuras rupestres em Florianópolis?
Nossa hipótese, formulada a partir das orientações astronômicas das
rochas e das informações obtidas com índios de diversas regiões do
Brasil, é que o local da maioria dos monumentos megalíticos orientados e
das gravuras rupestres era utilizado como um centro xamânico
relacionado com o sol e com as constelações mitológicas indígenas. É
provavelmente o caso de Florianópolis.
Como tem sido suas pesquisas junto aos índios brasileiros?
Trabalho muito com os índios, com Astronomia indígena, principalmente com os conhecimentos dos pajés.
Sou astrônomo profissional, mas trabalho com o conhecimento indígena do
céu. Muito daquilo que digo se baseia no modo como os pajés me
explicaram a fazer a leitura do céu. Este é o sentido de meu trabalho
nos últimos anos, a Arqueoastronomia e a Astronomia dos índios
brasileiros.
Nos monólitos que estudamos na usina de Segredo, na
Bahia e Santa Catarina duas características nos chamaram a atenção.
Primeiro, o fato delas possuírem uma orientação astronômica. Em
segundo, sua altura — de 1,50 m a 1,60 m.
Aí, conversando com os
pajés, me explicaram os motivos da orientação e da altura. Os índios e
os povos antigos não faziam Astronomia só por fazer. Tudo tinha uma
razão. Além da parte prática, com finalidade de orientação — os pontos
cardeais — havia toda uma parte religiosa, de ritual, de culto aos
mortos, de fertilidade etc., que também era ligada à Astronomia. Por
exemplo, para os Tupi-Guarani cada um dos pontos cardeais representa o
domínio de um deus. O deus maior, que fica em cima da cabeça, é
Nhanderu. Os demais quatros deuses, representados pelos pontos
cardeais, foram aqueles que o ajudaram a fazer a Terra e todos os seus
habitantes. Quanto à altura das pedras, os pajés explicaram que tal
medida era para facilitar a mira do índio quanto à posição do nascer ou
do pôr-do-sol, para ele se localizar melhor em relação às estações do
ano. A pedra serve de mira, então você se afasta um pouco e ela tem que
estar na altura dos olhos. E a altura dos olhos do índio era aquela.
Os índios brasileiros também utilizavam constelações para orientação e calendário?
Sim, a constelação do Cruzeiro do Sul, por exemplo, era usada para
determinar os pontos cardeais, as horas da noite e as estações do ano.
Há muitas gravuras e pinturas rupestres que representam uma cruz, em
sítios arqueológicos. Para os índios da família Tupi-Guarani, a
constelação do Cruzeiro do Sul tem também um sentido mitológico.
Fomos muito criticados, até por intelectuais, quando falamos que
aqueles monólitos que estudamos tinham ligação com os índios e possuíam
objetivos astronômicos. Porque o preconceito dizia que o índio
brasileiro, o parananse, catarinense etc. não tinha conhecimento nenhum
de Astronomia.
E isso me chocou, porque é sabido que todos os povos antigos faziam a leitura do céu. Se não fizessem não sobreviveriam.
Eles se baseavam num calendário próprio e desse modo sabiam as
estações. E, de acordo com o clima, que animal iriam caçar, que fruto
iriam colher, que peixe iriam pescar. Tudo isso vinha da leitura do
céu. O contrário é que não é verdadeiro.
Como os índios brasileiros marcavam o mês e o ano?
O primeiro dia do mês era quando aparecia, do lado oeste, logo após o
pôr-do-sol, o primeiro filete da Lua, depois do dia da Lua Nova, quando
a Lua não é visível. O ano iniciava quando as Plêiades, conhecida como
As Sete Estrelas, apareciam pela primeira vez, do lado leste, logo
antes do nascer-do-sol, perto do dia 11 de junho, depois de cerca de um
mês sem serem vistas. O conhecimento astronômico dos nossos índios
aparece em inúmeras gravações rupestres no Paraná e Santa Catarina.
Encontramos a representação de um cometa numa pedra aqui no Paraná. Se
você mostrar para qualquer criança ela vai falar que é um cometa. Tem o
núcleo, a cabeleira, a cauda. O desenho é perfeito. Inclusive a cauda
não é reta. E por que?
Quando é a cauda de um cometa velho, ele só
tem gás, então a cauda é reta devido ao vento solar. Mas quando o
cometa é jovem, grande e brilhante ele solta "poeira" e a cauda é
curva. Então se deduz que foi um cometa grande e brilhante que os
índios desenhistas viram e representaram.
Localizamos também uma
rocha que tem nada menos que 250 desenhos relacionados com o céu. Só
para vermos que o nosso índio, desde a pré-história, já tinha cultura
astronômica. Ao contrário do que muita gente diz.
É verdade que o sr. descobriu uma rosa dos ventos dos guaranis no Paraná?
Os Guarani têm uma rosa-dos-ventos. Uma informação que li sobre a
gênese guarani era de que no céu existiam palmeiras azuis representando
os quatro deuses (os quatro pontos cardeais: norte, sul, leste, oeste)
e suas quatro esposas (os pontos colaterais: nordeste, noroeste,
sudeste, sudoeste) formando uma rosa-dos-ventos.
Os Guarani dizem
que tudo o que existe no Céu existe também na Terra. Porque a Terra
nada mais é do que um reflexo do Céu. Aí começamos a procurar algum
vestígio concreto disso. Até que um dia no Paraná, em Itapejara
D’Oeste, na beira do rio Chopim, encontramos essa rosa-dos-ventos!
Encontramos um círculo de palmeiras. Colocamos o teodolito no meio do
círculo e medimos as direções dessas palmeiras. O resultado é que deu
exatamente os pontos cardeais e os pontos colaterais. Uma rosa dos
ventos de palmeiras aqui na Terra!
Curioso notar que a palavra
Itapejara não significa nada em guarani. No entanto, originalmente essa
região se chamava Tapejara, que significa o Caminho do Senhor. E
certamente uma rosa-dos-ventos é um excelente guia.
Por que o sr. tem percorrido escolas da região sul ensinando Astronomia indígena?
As constelações dos índios são bastante fáceis de observar. Notei algo
curioso. As constelações da Astronomia ocidental, as que constam em
nossos livros, geralmente as pessoas leigas não conseguem ver.
Eu ,
como astrônomo, sei obviamente onde estão todas as principais estrelas
de uma determinada constelação, mas consigo imaginar com dificuldade um
Leão naquele tal lugar ou dois Peixes em outro lugar. Agora pensem
numa criança, ou numa pessoa leiga no assunto, elas olham o céu e ficam
decepcionadas.
Com as constelações indígenas isso não acontece. Não
precisa forçar a imaginação, você olha e enxerga. Por que? Porque os
índios não juntavam simplesmente as estrelas. Juntavam as estrelas
brilhantes e formavam as figuras com as manchas claras e escuras da Via
Láctea. Além disso, eles vêem mesmo determinado animal no céu. Como
aquela brincadeira que a gente faz com as crianças, de enxergar
desenhos nas nuvens.
Para o ensino da Astronomia às crianças, as
constelações indígenas são um auxiliar precioso. Quando elas aprendem
as constelações indígenas — da Anta, do Veado, da Ema, da Cobra, da
Canoa etc. — depois a ocidental fica mais fácil de ensinar. Primeiro
você mostra a indígena e depois a ocidental. Assim ela não se
decepciona e se sente incentivada a visualizar a outra.
Outra coisa
interessante: você sabia que o mito do Saci Pererê, que muita gente
pensa ser africano, é o Jacy Jaterê dos índios brasileiros? Significa
"fragmento de Lua". A origem do Saci Pererê é a mitologia indígena e
tem ligação com a Astronomia.